Entrevista com Victor Pavarino 18/04/2020 - 16:51
Considerando o cenário mundial atual, mais especificamente em relação ao Brasil e o Trânsito, realizamos uma entrevista com o senhor Victor Pavarino, assessor em segurança viária e mobilidade sustentável da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi representante da OPAS/OMS na Câmera Temática de saúde e Meio Ambiente do CONTRAN.
Revista Saúde e Trânsito: Com a paralisação de diversas atividades sociais, as pessoas saem menos às ruas e o índice de acidentes tende a diminuir. Há relatos na mídia que em alguns lugares houve queda de 30% a 40% da taxa de ocupação dos leitos de UTI devido aos eventos de trânsito. Esta é uma realidade observada pela OMS/OPAS? Se sim, há ações previstas para manutenção da redução destes índices no retorno as atividades?
Victor Pavarino: A queda da incidência de traumas ocorridos no trânsito é um padrão muito frequentemente observado em períodos onde há bruscas reduções de deslocamentos e menos exposição de usuários das vias, o que não significa que passamos a ter um trânsito mais seguro. Caso não haja mudanças estruturais nos padrões de mobilidade que geraram os índices até então vigentes, não há por que cogitar que as lesões no trânsito deixarão de demandar os leitos hospitalares em patamares críticos, à medida em que as rotinas voltem aos padrões anteriores ou que a economia se reaqueça.
É possível que alguns padrões culturais se adaptem, em alguma medida, a práticas que já eram tendência e foram intensificadas, como o teletrabalho, webinars, comércio e cursos on-line, entre outros, e se consolidem como o "novo normal". Isso pode influenciar, em diferentes medidas, algumas características da mobilidade, trazendo, por exemplo, uma circulação maior de veículos e de tele-entrega. Pode ser que uma série de viagens, antes realizadas para determinados fins, deixem de ser feitas em função das alternativas virtuais. Ou que sejam, mais provavelmente, substituída por outras, com outros objetivos, com diferentes trajetos, horários, frequências e meios de transporte. É cedo para dizer o quanto e em que ritmo isso poderá acontecer e afetar a morbimortalidade no trânsito. Uma coisa, contudo, é certa e vale repetir: em não se modificando os fatores que determinam o problema, não há por que apostar que o problema deixará de existir.
Esses fatores são já plenamente conhecidos. Há elementos importantes relacionados ao comportamento dos usuários das vias, que devem, certamente, ser trabalhados, assim como o investimento em desenhos urbanos com sistemas viários mais seguros e inclusivos, legislação, fiscalização e formação dos condutores. Contudo, é fundamental considerar aspectos anteriores que determinam os comportamentos. Esses aspectos estão muito fortemente relacionados a vivermos em cidades que, em sua grande maioria, foram criadas ou adaptadas de modo a servirem prioritariamente a padrões de deslocamentos individuais motorizados, em ambientes de circulação predominantemente perigosos, favorecendo velocidades incompatíveis e inseguras, em especial prejuízo aos segmentos mais vulneráveis, além de ineficazes, gerando congestionamentos e deseconomias.
Não há, pelo menos até o momento, um plano específico para manter a queda da redução dos índices de acidentalidade, que seja do nosso conhecimento. Entretanto, a experiência sem precedente que temos vivido em decorrência da COVID-19 tem suscitado reflexões inevitáveis nas mais diversas dimensões de nossas vidas pessoal e coletiva, forçando todos nós a revisitarmos a forma das nossas relações sociais, rotinas de trabalho e interação com o ambiente urbano. Em um momento em que cidades apresentaram, em todo o mundo, cenários tão diversos da rotina que estávamos acostumados, é irresistível um convite a refletirmos sobre a sustentabilidade dos modelos vigentes, incluído aí o trânsito. As coisas não devem todas voltar ao normal, posto que em muitas delas o normal era exatamente o problema. Eis aí uma boa provocação.
Revista Saúde e Trânsito:Levando em consideração as ações adotadas durante a Década de Ação pela Segurança no Trânsito (2011-2020) e as adotadas na prevenção do COVID-19, há algo que podemos aprender a respeito?
Victor Pavarino: Aqui estamos falando de fenômenos muito distintos, embora comunguem o fato de afetarem drasticamente o sistema de saúde. O primário caso, ações relacionadas à década de ação, diz respeito a traumatismos adquiridos em eventos que têm suas causas e fatores de risco bastante conhecidos, sendo, portanto, perfeitamente previsíveis e evitáveis em sua quase totalidade e contam para tanto, inclusive com medidas de eficácia experimentadas e comprovadas. Esse aspecto o difere do segundo caso, onde temos uma epidemia sem precedentes, demando ainda estudos sobre sua dinâmica, seu enfrentamento e manejo, em uma corrida contra o tempo.
Contudo, há também algo, além do impacto na saúde pública, muito comum a ambos os casos: a necessidade do encaminhamento dos problemas e soluções serem fundamentadas em boa ciência e técnica, com evidência subsidiando ações. Por outro lado, eis aí outro aspecto comum à Década de Ação no Trânsito e à COVID-19, de pouco servirá um conjunto qualificado de conhecimentos que não venha acompanhado da determinação em implementá-los. E aí entramos em outras esferas que não apenas a técnica.
A Década de Ação pela Segurança no Trânsito não apenas conclamou os Estados-Membros a se engajarem na redução da morbimortalidade por acidentes de trânsito, mas teve o mérito de alçar o problema das mortes e lesões no trânsito ao nível da questão de saúde pública, proporcionando a busca de recursos, compromissos e cobrança de ações. O trânsito, nesse período, foi pautado de uma forma sem precedentes. Há outros elementos que poderíamos ter em conta em um paralelo do trânsito e o surto da COVID-19. Durante a Década de Ação 2011-2020 o trânsito teve visibilidade sem precedentes. Com isso, foram criados, implementados e aprimorados, em muitos países, uma série de projetos e programas. Houve, ainda, mais assimilação dos novos paradigmas de segurança viária, como a visão sistêmica.
Estando agora próximo ao fim desta década de ação, não mais se vislumbra que tenhamos, globalmente, alcançado uma redução pela metade das 1,2 milhão de mortes no trânsito que tínhamos em 2011. Contudo, tendo em vista que se projetava para o fim da década 1,9 milhão de mortes no trânsito, caso nada fosse feito, o fato de termos 1,35 milhão de mortos no trânsito, de acordo com as estatísticas mais recentes da OMS, significa que, apesar da meta sonhada não ter sido atingida, muitas vidas foram efetivamente salvas, mitigando de alguma forma um impacto que teria sido maior. Eis aí outro provável aprendizado da Década.
Revista Saúde e Trânsito: Como você vê a importância da participação da OMS na Câmara temática do CONTRAN?
Victor Pavarino: A OPAS/OMS se vê honrada em poder participar das câmaras de assessoramento do Conselho Nacional de Trânsito brasileiro, ajudando a consolidar o olhar da saúde na questão do trânsito. Nossa colaboração, particularmente no que concerne a trazer a experiência de outros países, pode se dar tanto com nossa participação direta, como membros titulares, como convidados quando demandas específicas se fizerem necessárias. O importante é poder aportar contribuições ao Conselho.
Revista Saúde e Trânsito: O que lhe pareceu serem as principais mensagens da 3ª Conferência Ministerial Global sobre Segurança no Trânsito, ocorrida na Suécia, em fevereiro de 2020, e a Declaração de Estocolmo, aprovada na conferência pelos ministros dos países membros?
Victor Pavarino: Se a primeira conferência mundial (Moscou, 2009) foi caracterizada pelo ineditismo – a primeira vez que o tema da segurança viária foi tratado como questão global, em alto nível de governança; e a conferência de Brasília (2015) teve a marca do balanço de metade da década, com premência dos desafios dos países em desenvolvimento, a Conferência de Estocolmo, poderia ser resumida no alinhamento das questões de trânsito e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Em outras palavras, consolidou um entendimento dos problemas do trânsito como parte de um problema de desenvolvimento social, cujas soluções devem ser endereçadas em escopos mais amplos, particularmente as políticas de transporte.
A Declaração de Estocolmo, nesse sentido, reafirma sua integridade, sinergia, interdependência e indivisibilidade dos ODS, e não se furta a conclamar que a segurança viária deve ser abordada em estreita conexão com as questões de saúde física e mental, desenvolvimento, educação, equidade, equidade de gênero, cidades sustentáveis, meio ambiente e mudança climática. Fala ainda em acelerar a mudança para modos de transporte mais seguros, limpos, mais eficientes em termos energéticos e acessíveis, além de destacar a importância de promover níveis mais altos de atividade física, como caminhar e andar de bicicleta, bem como integrar esses modos ao uso do transporte público para alcançar a sustentabilidade.
Por fim, é de um simbolismo inegável o fato de Estocolmo ter sido o palco da conferência que marca o fim da Década de Ação. A Suécia continua sendo uma das maiores, se não a maior, referência global em segurança viária, berço da Visão Zero, que inspira a visão sistêmica do trânsito seguro. Mas, mais importante que os índices invejáveis, a lição maior que a Suécia parece trazer é a importância de as utopias projetadas serem acompanhadas de forte determinação em mudar quadros desfavoráveis. Um exemplo que não serve apenas a países ricos.